CISMÁTICOS NA LAPA
O
cisma liberal
Os liberais, que em 1834 tomaram o poder em Portugal, eram
de inspiração maçónica e não hesitaram em mergulhar o país em cisma, cortando
relações com a Santa Sé, extinguindo as Ordens Religiosas, fechando os
seminários e colocando à frente das dioceses homens que lhes eram fiéis e não
tinham em conta a obediência ao Papa.
O encerramento dos conventos de São Francisco e do Carmo –
mais de um mês antes do decreto do Mata-Frades – há-de ter tido um efeito
profundo na vida religiosa de Vila do Conde e por isso também na Igreja da
Lapa.
O Mosteiro de Santa Clara, como as outras casas religiosas
femininas, não foi encerrado, mas entrou em morte lenta por não poder admitir
noviças.
A Misericórdia,
instituição cismática
Nos anos que precederam a vitória liberal, na direcção da
Misericórdia de Vila do Conde estavam só daqueles homens que depois se
manifestaram a favor do novo regime. E a situação naturalmente piorou após os
liberais se apoderarem da direcção da câmara.
Em Junho de 1834, o prior vila-condense, que se chamava
António Francisco Lopes e era vila-condense, da Rua dos Pelames (era devoto de
Nossa Senhora da Lapa), foi expulso em Junho por Paulino de Carvalho, que
naturalmente era afecto ao liberalismo e ao cisma. Mas, em 1839, este acabou
também expulso. Sucedeu-lhe o terrível Domingos da Soledade Silos, que era uma
combatente cismático e paroquiou Vila do Conde até 1850. Fizeram-no pregador
régio, tendo pregado algumas vezes para a corte na Igreja da Lapa do Porto. Tem
retrato na Misericórdia.
Os benfeitores da Igreja da Lapa que se referirão no
capítulo seguinte foram todos benfeitores da Misericórdia.
A Igreja da Lapa no
inquérito de 1845
Porventura por verificar que a Igreja da Lapa da sua paróquia
tinha semelhanças muito próximas com a do Porto, o Pe. Silos falou dela com
entusiasmo em 1845:
A Igreja da Lapa, templo
riquíssimo pela arquitectura e tão decente no seu interior que Sua Ex.cia o Senhor
D. Frei Caetano Brandão, quando o visitou, lhe concedeu licença perpétua para
nele se expor o Santíssimo Sacramento. Foi fundação dos povos e fiéis da vila e
são ainda hoje os que a sustentam; tem os necessários e decentes paramentos
para celebrar.
Compare-se com esta insípida nota de 1825:
A capela de Nossa Senhora da Lapa
é venerada pelos confrades e devotos; está decente.
Ex-voto de Rita da
Piedade de Sousa
O ex-voto de Rita da Piedade de Sousa, de 1845, testemunha
um grande milagre, a recuperação da visão por esta senhora vila-condense!
Sua legenda:
Testemunho de gratidão que dá a
Jesus, Maria e José Rita da Piedade de Sousa, desta Vila, a qual, estando
inteiramente cega e sujeitando-se a operação de catarata, por intercessão da
Sagrada Família, recuperou a sua vista em 1845.
A gratidão à Sagrada Família supõe a já referida reorientação
da devoção na Capela da Senhora da Lapa.
As roupagens das figuras sagradas são bastante simples, algo
ocidentais. As da miraculada, do médico e do outro homem e mulher devem ser
bastante próximas das do uso naquele ano de 1845.
Este ex-voto vem, naturalmente, do tempo do prior Domingos
da Soledade Silos.
Este ex-voto de Rita da Piedade de Sousa deve-se encontrar
no Porto, levado por Rocha Peixoto. Muito importante a representação da Sagrada
Família.
Os medalhões do tecto
da Lapa
O tecto da Igreja da Lapa ostenta dois medalhões, um no do
corpo da igreja, outro no da capela-mor. O primeiro apresenta-se num estado de
conservação bastante bom, metade do segundo está apagado[1].
O do corpo da Igreja,
além do medalhão propriamente dito, com a sua moldura também pintada, possui
uma larga envolvência pictórica, com motivos de procedência clássica, destinada
certamente a realçar a sua importância e a evitar que ele ficasse muito isolado
na vasta superfície do tecto.
É aceitável concluir que os dois formam um conjunto, que se
complementam para promover uma única mensagem.
O do corpo da igreja está inclinado para a esquerda e mostra
um pastor muito enroupado e de cajado, entre as suas ovelhas, que se acolhe à
sombra duma pequena árvore. Por sobre a cabeça, no alto, paira um pequeno grupo
de anjos músicos (todos têm instrumentos, mas sempre diferentes). O quadro pode
representar o anúncio do nascimento do Salvador aos pastores de Belém que se lê
no Evangelho de São Lucas (cap. 2, 8-14).
No medalhão da capela-mor, a parte correspondente ao pastor
do anterior está bastante apagada, como já foi dito, talvez devido a alguma
persistente infiltração de água.
Ao cimo, representa-se um minúsculo Olho de Deus[2]
e logo a seguir foi colocada uma inscrição latina coleante que não tem uma
única palavra correctamente grafada. Leitura da inscrição:
COLUND NEAIN FORAMINEV.
O Prof. José Emídio Martins Lopes deu-se ao cuidado de a
identificar e concluiu que queria reproduzir o início desta frase do Cântico
dos Cânticos 2, 14:
Columba mea in foraminibus petrae, in caverna maceriae, ostende
mihi faciem tuam, sonet vox tua in auribus meis, vox enim tua dulcis et facies
tua decora.
Versão para português:
Minha pomba, nas fendas do
rochedo,
No escondido dos penhascos,
Deixa-me ver o teu rosto,
Deixa-me ouvir a tua voz.
Pois a tua voz é doce
E o teu rosto encantador.
Sob a inscrição distingue-se com clareza o desenho duma
pomba.
O Cântico dos Cânticos, livro de tema amoroso atribuído a
Salomão mas escrito mais de sete séculos após a morte deste rei, é altamente poético
e faz a delícia dos místicos, que o lêem alegoricamente, passando do canto do
amor humano para o canto do amor divino[3].
No caso da Igreja da Lapa, pretendeu-se certamente que o
pastor e os anjos do primeiro medalhão e a pedra do segundo se referissem a
Belém e à Lapa do Presépio. “Columba mea in foraminibus petrae” (“Minha pomba,
nas fendas do rochedo, no escondido dos penhascos”) deve equivaler a “Jesus
Menino, na gruta da Lapa”.
Se isto for verdade, os medalhões teriam sido pintados em
meados do século XIX quando era prior de Vila do Conde o Pe. Domingos da
Soledade Silos e na Rua da Lapa vivia o professor de latim João José Teixeira
de Faria.
Ignoramos quem tenha sido responsável pelos erros da frase
latina.
O
concelho de Vila do Conde alargado
Se a capela original de São Bartolomeu
era como que uma sentinela à entrada nascente de Vila do Conde, isso mudou
inteiramente com o alargamento do concelho pelos liberais em 1836, que o
cresceram muito nessa direcção.
Apesar se então já haver entre a Vila e
Azurara, a importância da Rua de São Bartolomeu ainda diminuíra pouco, o que só
acontecerá com a abertura das novas estradas a partir da década de 60.
A anexação de
Formariz a Vila do Conde
Provavelmente em 1867, a freguesia de Formariz foi anexada a
Vila do Conde, já que nesse ano terminam os assentos paroquiais e no ano
seguinte a junta de Vila do Conde o era também de “Formariz, anexa”. Embora
antes já estivesse integrada no concelho, quebrava-se assim alguma barreira que
restasse para a adesão dos fiéis de Formariz à Lapa[4].
Irmão da Misericórdia, o Pe. Silos tem lá também o seu
retrato.
Ex-voto de Rita da Piedade de Sousa.
Medalhão do tecto do corpo da
Igreja da Lapa.
Medalhão do tecto da capela-mor.
[1] Na
Igreja Paroquial de Arcos, que vem de 1855, abunda a pintura quer no tecto quer
nas paredes da capela-mor e mesmo nas do corpo do templo. Na de Touguinhó, há o
painel do retábulo-mor, que deve remontar a 1842 ou anos seguintes. Os
medalhões da Igreja da Lapa têm assim um enquadramento em termos de pintura ao
serviço da divulgação duma mensagem religiosa.
[2] Há
uma representação do Olho de Deus num ex-voto de 1838 à Santa Cruz de Balasar e
na capela-mor da Igreja Paroquial de Arcos.
[3] Esta
passagem do sentido literal para o alegórico foi, em tempos, estendida a todo o
texto bíblico; o grande sábio vila-condense Pe. Manuel de Sá, SJ (1530-1596),
foi um dos primeiros estudiosos modernos a reivindicar o regresso ao sentido
literal.
[4] Esta
anexação não foi pacífica. Segundo documentação do Arquivo Municipal, ainda em
1876 “o juiz, tesoureiro, devotos e zeladores da Igreja de Formariz” se
recusavam a dar ao inventário da Matriz “as alfaias, paramentos e fundos
daquela Igreja”. O governador civil mandou que o caso seguisse para o tribunal.
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