quinta-feira, 18 de janeiro de 2018

UMA VAGA DE MILAGRES


Da leitura da Botica Preciosa deduz-se que a pregação do Pe. Ângelo de Sequeira era acompanhada por frequentes milagres. Também se assinala uma pequena vaga de milagres ligados à intercessão de Nossa Senhora da Lapa em Vila do Conde. Isso chegou até nós através de ex-votos ou milagres e, indirectamente, através da grande obra da igreja.
O mais antigo beneficiado dum milagre foi um natural de São Simão da Junqueira, terra do Prior Falcão.

Ex-voto de João da Costa, de São Simão (da Junqueira)

Diz assim a sua cartela:

Milagre que fez Nossa Senhora da Lapa de Vila de Conde a João da Costa, de São Simão, que estando em perigo de vida, desenganado de médicos, e se apegou com a Senhora: Ela lhe deu saúde. Já que fez tão grande milagre, por isso se mandou pintar. Ano de 1759.

Neste caso, Nossa Senhora encontra-se à esquerda da pintura, não está envolta em auréola de nuvens e olha de frente para quem aprecia o quadro. O seu manto, muito azul, cobre o que parece ser uma segunda capa de cor vermelha viva. Sob ela, é que está o vestido branco.
Tem-se a impressão de que um véu lhe encobre parcialmente o cabelo. Uma coroa pousa-lhe sobre a cabeça.
Ao nível do peito, o manto alarga-se destacando um busto muito volumoso. Os seus pés assentam talvez sobre nuvem.
É neste ex-voto que a imagem da Senhora da Lapa se parece mais com a da Botica Preciosa.
Pela cama, pelo seu dossel de cor branca, pela coberta, aparenta ter sido pessoa de posses.
Os dois homens, o negro (escravo?) e o branco (cirurgião?), não estão em atitude de oração, mas, em atitude de manifesta preocupação, chamam a atenção para o doente; os seus olhares dirigem-se para quem olha para o ex-voto, o mesmo fazendo o doente.
Não há janelas e o chão da divisão da casa distingue-se mal do que deviam ser as paredes.
“Já que fez tão grande milagre, por isso se mandou pintar”: a pintura poderia não ser da iniciativa do beneficiado, mas da Confraria da Lapa.
Agostinho Araújo dá notícia de outros dois ex-votos de 1759, “o quadrinho que celebrava a graça concedida pela Virgem, em 1759, a Manuel, filho de Manuel Gomes, da freguesia barcelense de Chorente, oferecido por pessoa de Chorente”, desaparecido, e “o ex-voto de Maria Baptista[1], mulher de Agostinho Lopes, de Vila do Conde, a qual, dando-lhe um acidente na rua, logo melhorou ao invocar a divina Senhora da Lapa”, que será também do mesmo ano marcante de 1759. Não é indicado o paradeiro dele.
Presumimos que este ex-voto se encontre num museu de Lisboa e por isso recorremos à reprodução do trabalho de Agostinho Araújo. Face aos precedentes, tem a originalidade de respeitar a pescadores e aos perigos do mar e não a gente de terra.

Ex-voto de José Gomes Visa e Manuel da Costa Craveiro

Consta da cartela:
Milagre que fez Nossa Senhora da Lapa a José Gomes Visa e a Manuel da Costa Craveiro, os quais, saindo nos seus batéis com a sua gente, estando o mar e tempo bom, se levantou de tal sorte o mar e temporal que, obrigados a dar-lhes a popa, como fizeram, entrando no porto da Guarda milagrosamente por mercê da Senhora no ano de 1760.
Nossa Senhora olha do canto superior direito os dois barcos que então navegam em mar sossegado. Gritante falta de perspectiva que permite que o tamanho da representação da Senhora da Lapa tenha quase a dimensão dos dois barcos; nestes distinguem-se minúsculos pescadores.
João Gomes Visa vivia na Rua da Torre e devia ter um parente sacerdote, de nome João Francisco Visa. O milagre aconteceu na Galiza.
Mais uma vez a imagem da Senhora lembra a da Botica Preciosa.
Durante o período que se seguiu à pregação do Pe. Ângelo de Sequeira, a devoção a Nossa Senhora da Lapa estendeu-se por larga área.

Ex-voto de Joaquim, filho de André Pereira da Costa, de Vila do Conde

Informa a cartela:
Milagre que fez Nossa Senhora da Lapa a Joaquim, filho de André Pereira da Costa, desta Vila, da Rua de Sobmosteiro, estando gravemente enfermo de bexigas, com uma convulsão, já desenganado dos médicos, sem esperança de vida. E logo, recorrendo à dita Senhora, lhe deu saúde no ano de 1761 anos.


Nossa Senhora foi pintada em posição frontal, mas a sua cabeça e olhar dirigem-se para a cama. O seu manto é de um azul claro, com forro vermelho, sobre uma veste branca com ramagens e de forro azul. Por baixo, distingue-se um vestido de azul mais claro. Envolta em halo de nuvens, apoia-se sobre uma base sustentada por três querubins. Não possui coroa, mas parece que um véu lhe cobre os cabelos. A silhueta é globalmente volumosa.
Semelhanças bastante evidentes com a imagem da Botica Preciosa.
Das outras três pessoas do quadro, uma mulher (mãe? esposa?) reza com o olhar dirigido para a Senhora e um homem, o “médico”, atende o doente, que está naturalmente de cama.
A coberta do leito é azul e o dossel vermelho.
As paredes da divisão não têm nitidez e por isso não mostram janelas.
A data de 1761 é seguida de um arroba, que abrevia a palavra anos.
Aliás, só se pôde projectar por contar com tal adesão.
Os três quadros têm em comum a imagem de Nossa Senhora, a cama em que jaz o doente e um pequeno conjunto de pessoas, familiares ou porventura cirurgiões, os curandeiros encartados do tempo.

Ex-voto de Alves Gomes

Sendo embora já do começo do séc. XIX, incluímos aqui o ex-voto de Alves Gomes por nos parecer ainda bastante enquadrado na devoção originada pela pregação do missionário apostólico brasileiro.
Leitura da cartela:
Milagre que fez Nossa Senhora da Lapa (a) Alves Gomes, soldado, e a sua mulher, desta Vila, que, achando-se doente com uma grande dor e em perigo de vida, recorreu à mesma Senhora e em breve tempo melhorou, em Janeiro deste ano de 1804.
Na pintura, vêem-se o doente na cama e a esposa em oração, além de Nossa Senhora da Lapa. A representação da Mãe de Deus ainda lembra as imagens originadas da divulgação do Pe. Ângelo de Sequeira, mas a uma distância já grande em termos de vestes e de coroa.
Nossa Senhora foi pintada entre a suplicante e o doente, envolta em halo nebuloso; apoia-se sobre três querubins. Dos lados, a meia altura, vêem-se mais dois anjos à esquerda e à direita. O manto é branco, mas não liso, sobre um vestido de vermelho retinto. Com coroa, mas sem véu.
A silhueta é muito menos volumosa que a dos ex-votos anteriores denotando notório afastamento da imagem da Botica Preciosa.
A suplicante reza sem fixar a Senhora, frente à cama onde está o marido.
A coberta da cama do soldado Alves Gomes é castanha, com lençóis muito rendados. Dossel vermelho de menos aparato que o dos ex-votos precedentes.
O interior da casa é muito vagamente definido.
Todos estas tábuas votivas apontam para a divulgação que o Pe. Ângelo de Sequeira fez da devoção à Senhora da Lapa, mas os quatro que datam de entre 1759 e 1761 lembram muito proximamente a sua acção em Vila do Conde (bem como a do Prior Falcão que promoveu a construção da nova e sumptuosa igreja).




Ex-voto de João da Costa, de São Simão da Junqueira (1759).



Ex-voto de José Gomes Visa e Manuel da Costa Craveiro (1760)



Ex-voto de Joaquim, filho de André Pereira da Costa, de Vila do Conde (1761).



O ex-voto de Alves Gomes (1804).




[1] Esta Maria Baptista deve ser Mariana Baptista, da Calçada de São Francisco.

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